Intitulatio [dar-se a si próprio um título].

terça-feira, 23 de dezembro de 2008

De casa de gato, não sai farto o rato.



“Mago respirou fundo. Abriu o nariz e encheu o peito de ar ou de luar, não podia saber ao certo, porque a noite era clara como o dia e parada como uma montanha. Mas fosse de frescura ou de luz a onda que bebera num trago, de tal modo o inundou, que em todo o corpo lhe correu logo um frêmito de vida nova. Esticou-se então por inteiro, firmado nas quatro patas, arqueou o lombo, e deixando-se ficar assim por alguns instantes, só músculos, tendões e nervos, com os ossos a ranger de cabo a rabo. Arre, que não podia mais! Aquele mormaço da sala dava cabo dele. Deixava-o sem acção, bambo, mole e morno como o cobertor de papa onde dormia. A que baixezas a gente pode chegar! Ah, mas tinha que acabar semelhante degradação! Não pensasse lá agora a senhora D. Maria da Glória Sância que estava disposto a deixar-se perder para sempre no seu regaço macio de solteirona. Não faltava mais nada! E, se lhe restavam dúvidas, reparasse no que estava a acontecer naquele momento: ela a ressonar sozinha, na cama fofa, enquanto ele enchia os pulmões de oxigénio e de liberdade. É certo que a deixara primeiro adormecer, e só então, brandamente, deslizara de seus braços para o tapete e do tapete para a rua, através do postigo da cozinha. Uma questão de delicadeza, apenas. Porque, afinal, não havia vantagem nenhuma em fazer as coisas à bruta e ofender quem só lhe queria bem... Que diabo, sempre a senhora D. Maria Sância, a que até um fio de oiro lhe comprara para o pescoço! Que, considerando bem, por essas e por outras é que chegara àquela linda situação...” (Torga, Miguel, Bichos, 15ª edição, Coimbra, 1985)

Teremos, nós, tal como Mago, uma D. Maria da Glória Sância nas nossas existências? Será universal ou apenas particular? Para todos? Apenas para eleitos? Uma D. Maria da Glória Sância que, mesmo contra e atentando a natureza, tolda a vida….
Algo me leva a querer que todos nós teremos uma D. Maria da Glória Sância nas nossa vidas. Mas creio que existirão também duas D. Maria da Glória Sância divergentes: A de Mago e a sua discordante, a sua oposta. A D. Maria da Glória Sância boa e a D. Maria da Glória Sância má.
Será uma questão de sorte… Sorte de ser um Mago ou fortuna de ser um “Lambão” ou uma “Faísca”.
“Aquele mormaço da sala dava cabo dele.” O mormaço dá cabo de toda a gente… Mas quem o escusa? mesmo contra e atentando a natureza??? Se há alguém, esse alguém que atire a primeira pedra…
Quem estará correcto? Mago ou Lambão ou a Faísca?
Eu cá acho que era o Baltazar! Que nunca deixou algum grato farto.