Intitulatio [dar-se a si próprio um título].

sábado, 27 de dezembro de 2008

O inicio de um conto...


- Ali, à esquerda!
- Onde?
- Será possível, suspirou Martim, que não consigas distinguir o branco do preto? Estás a ver as pedras pretas?
- Quais?
- Todas… As que criam esta dupla muralha! Esta muralha, idêntica aos muros de pedra rectangular que ladeiam as casas, com leve inclinação para dentro, de superfície lisa e com as pedras dispostas concentricamente? A que por ora nos serve de banco?
- Ah, sim… A muralha…
- Ali à esquerda estão, pouco afastadas entre si, duas pedras rectangulares brancas que, por o serem, se distinguem facilmente das que as rodeiam… São do mesmo formado que as pretas mas são muito mais claras!
- Ah?


Martim, sentado sobre o frio da dupla muralha, irrita-se com o amigo e decide adaptar o seu discurso a este. Será que perceberá com uma imagem o que não consegue por palavras? Esteuã é um ser deliciosamente ingénuo, pensa Martim, de tal forma que parece ter a idade de Joana, a irmã mais nova de Martim.
Se a Joana, com os seus parcos três anos de vida, concebe quase todo o seu mundo com os olhos, Esteuã também o perceberá. Pelo menos assim espera Martim.
- Espera…Vou descer… mas antes dá-me o teu cajado!
Esteuã, contra a sua vontade, anuiu e passou o cajado para a mão do seu amigo. Não gostava de se separar do seu objecto mais precioso. Desconfiava do mundo no que diz respeito ao objecto que zelava pelo seu sustento. Herdado do pai e de um número incerto de antepassados, o cajado permitia o amparo da sua mãe, o alinhamento do gado pelas pastagens e inumeráveis realidades que consentia à sua vida.
- Para que o queres?
- Não sejas tolo. Bem sabes que não se pode tocar-lhes!
- Não?!!!! Porquê?
- Espera um pouco. Depois de te ser possível distinguir o branco do preto contar-te-ei, mais uma vez, a bendita lengalenga…
- Toma cuidado! Não quero que nada lhe aconteça…
- Abençoado pau que goza de tanta protecção. Não te preocupes que não lhe acontece nada.
Martim, tirando a roupa, salta para um dos cursos de água que contornam as muralhas da aldeia e, segurando o cajado na sua mão esquerda, dirige-se ao seu objectivo. Quando se encontra perto, trava a marcha e, num feito de malabarismo, aponta o cajado para um das pedras e, suavemente, desliza a sua ponta para a outra. Regressa.
- Toma lá a vara… Já sabes quais são?
- Agora sim…
- Finalmente!
- Só falta descobrir o motivo pelo qual não lhe podes tocar…é por serem brancas?
Martim, habituado à lorpice de Esteuã, pareceu não ouvir a pergunta. Seria mais uma das muitas brilhantes da criação do seu melhor amigo.
- Não te lembras do motivo?
- Não.
- Nem uma pequena parte?
- Nada…
Martim, fechando os olhos, talvez pelo mesmo motivo que os galos os fecham para cantar, suspira.
- Como te contei, vezes sem conta, as pedras brancas, e não todas as outras, são as tampas de dois vasos misteriosos aí depositados por entre as pedras negras que erguem as muralhas. O nome da depositante já ninguém recorda, assim como ninguém lembra o tempo em que as outras pedras foram alinhadas para oferecer protecção às nossas casas. Apenas se sabe que a dona dos vasos, senhora de grande beleza e abastança conseguiu a protecção do deus Mars Cosus que, caso não te recordes, é o deus da guerra. Com essa protecção a bela senhora, sem marido ou família e conduzida pela sua avareza depositou toda a sua fortuna num dos vasos de tampa branca. À troca de favores a sedutora conseguiu que Mars Cosus depusesse no outro vaso uma grande maldição. Este anátema é tão forte que causa morte imediata a quem o abrir e grandes malefícios a todos os que estão ligados, por qualquer tipo de laço, ao violador.
Por este motivo não houve alguém, aldeão de Guia ou visitante, que ousasse desafiar o poder do deus mesmo quando a recompensa, para o sortudo, é um tesouro imenso….
Esteuã, meio adormecido pela história, pergunta para que é que ela precisava de um marido. A sua mãe havia perdido o seu e, segundo as suas palavras, apenas fazia falta para dar uns açoites a Esteuã. Por analogia se a donzela não tinha filhos não precisava de um marido para os castigar, tal como a sua mãe possuía a necessidade oposta.
Martim, possuidor da mesma idade de Esteuã, considerando-se tão bem informado como o seu amigo quanto aos assuntos dos mais velhos, apenas respondeu um vago “sei lá para que serve um marido”.
Martim contava tudo ao seu amigo e se Esteuã não sabia era porque aquele ainda não o descobrira ou este o tinha esquecido.
- Mas, Esteuã, se calhar está relacionado com o que a bela senhora fez a um dos muitos pretendentes, a maneira como tratou este seu prometido…
- Terá lhe dado com o cajado? Se calhar, como não tinha filhos, tratou de o despachar!
- Esteuã, não sejas parvo! Achas que uma senhora com posses tinha a necessidade de um cajado? Achas que ela tinha vontade de andar, pela serra, a guardar animais dos lobos ou a encaminhá-los para a pastagem?
- E porque não? Achas que ela alimentava os seus animais com o ouro da sua fortuna ou terá apenas deixado o pobre gado morrer à fome? Será que era dona de uma plataforma, ou mesmo de todas, e tinha sempre a porta do curral fechada para impedir a entrada dos lobos?
Martim, desesperado pelo rumo da conversa contemplou, como se a ganhar fôlego para os argumentos de seu amigo, as construções a que Esteuã se referia. Estas construções, dentro das muralhas de Guia, a sua aldeia, não passavam de alinhamentos implantados numa zona não residencial e que servia para guarda dos animais. Para resguardo dos animais, que parte deles, estavam à guarda de Esteuã. Martim relembra que os animais se encontram sob a protecção das muralhas devido à importância destes na subsistência da aldeia. A carne dos animais domésticos - porcos, cabras e cavalos -, o leite e outras gorduras constituíam a base da alimentação, estes animais eram necessários para a faina agrícola e as suas peles seriam trocadas por cerâmica, sal, instrumentos e adornos, vestuário, fabrico de armas e barcos. Terá alguma vez Esteuã alcançado a importância do seu ofício?
- Para de divagar! Se já estivesse seco da imersão a que a tua estupidez me forçou juro que fugia terra acima até encontrar a porta de casa e a conseguir fechar. Eu tenho algum cajado? Tenho?!
- Acho que não… Acho que se tivesses algum teu não passavas a vida a pedir o meu emprestado… Estupidez?!!
- Desculpa-me, já devia estar habituado a ela… De tal modo que a deveria ignorar. Já algum dia me viste a pastar gado?
- Já! Quando vais comigo…
- Merda! Sozinho?
- Não, sozinho não… Se te tivesse visto sozinho era porque estava ao pé de ti… Se estava ao pé de ti não estavas sozinho…
- Para, Esteuã! O que eu queria que compreendesses era que a senhora não era pastora… Se eu, filho de um mestre do bronze, não me dedico à pastorícia do meu gado, deixo estar tarefa para ti, quanto mais uma senhora com uma fortuna incalculável…
- …Se andavas a pastar tinhas a companhia do gado…
Martim, em voz alta, alheio aos pensamentos de Esteuã, recorda a história da donzela que, em idade casadoira, tinha um pretendente. Um pretendente que acabou por ser corrido com duas chapadas ao cometer a ousadia de se gabar, em público, de ter recebido da donzela um beijo na face.
- Então quer dizer que o meu trabalho não é nada solitário… Ando sempre acompanhado…
Martim finaliza a história comentando que, pelo facto de a donzela ter oferecido estas duas bofetadas, ficou sozinha para o resto da vida pois nunca mais um mortal atrevera a aproximação.
- Será que estou ou não sozinho? …
- Ainda continuas na tua, Esteuã? Pois olha que não te volto a contar a história… Se estás ou não sozinho só as tuas cabras te podem responder!
Martim, verificando que já estava enxuto, cobriu-se e começou a caminhar muralha fora.
- Espera, Martim, espera por mim!
- Já fechaste a porta às cabras?
- Não…
- Então vai cumprir a tua obrigação… Vemo-nos depois da ceia.
Esteuã, do seu ponto de observação privilegiado observa o seu amigo Martim a afastar-se, a saltar da muralha e a subir em direcção a casa. Absorvido pelo seu pensamento, Esteuã continuava intrigado se teria ou não a donzela batido no seu pretendente com o báculo.
- Esteuã, olha as cabras!
- Já vai, já vai… E ainda te vou apanhar!
Martim, fatigado de explicações infrutíferas e com necessidade de alimento, ao ouvir estas palavras desata a correr em direcção de casa. Afinal já não estava molhado e, assim, já não possuía qualquer desculpa para não procurar o refúgio de sua casa, a segurança da sua porta, enfim, a fuga de Esteuã.
- Martim, és tu?
- Sim, mãe…que me queres?
- Vê, por favor se consegues calar as tuas irmãs… Desde manhã que as ouço e estou quase a deitá-las ao forno do teu pai!
- Não me apetece… Basta-me o Esteuã…Onde estão os avós?
- Foram apanhar fruta… devem ter ido para o lado de Banhos pois saíram de manhã e ainda não voltaram.
- De Banhos?? Não fica um bocado longe para ir à fruta?
- Estou a brincar!... Cala-me essas miúdas! Se eles tivessem ido para os lados de Banhos eu pedia-lhes para deixar as tuas irmãs perto da Pedra Escrita…
- Boa ideia, mãe! Ainda os podemos convencer a ir para esses lados!
- Martim! Ao fim de catorze anos a viveres comigo ainda não sabes quando brinco?
Catalina, mãe de Martim, esboça um pequeno sorriso e encaminha-se para a porta da rua.
- Onde vais, mãe, não me deixes só com elas!
- Olha está aqui o Esteuã… Olá. Esteuã… Apenas vou chamar o teu pai para a ceia.
Martim corre para a porta e corre o ferrolho. Encostado à porta Martim vê-se entre pesadelos: De um lado da porta está Esteuã e do outro Teresa e Joana, suas irmãs, “ao estalo”. Martim, com tamanha barulheira, não consegue distinguir os berros das irmãs dos murros de Esteuã na porta. Qualquer dia teria que se atirar da muralha pois apenas a companhia dos deuses o podiam salvaguardar destes mafarricos.
- Pronto, Esteuã, desisto, podes entrar!
Esteuã entra e, tal como sempre, tal como se fosse a primeira vez percorre a casa com os olhos. Esteuã gostava da casa de Martim. Era parecida com a sua mas tinha algo diferente, algo que a distinguia da casa onde vivia. À primeira vista ambas tinham planta circular, telhados em colmo, a lareira ao centro e o banco em pedra que, seguindo encostado o traçado das paredes, era circular…
Analisando, à segunda vista, a diferença era mesmo o banco…
- Foi com o cajado, não foi? Eu sei que foi…
-Não, não foi! As bofetadas dão-se com a mão e não com um pau…
Será para continuar? Preciso do vosso apoio!